03/01/2009

A humanidade está em jogo em Gaza



“O tempo perdido deve ser sempre lamentado. Mas, no Médio Oriente, perder tempo também é perigoso. Mais um ano passou em que foram escassos os progressos na superação das divergências entre palestinianos e israelitas. Os ataques aéreos dos últimos dias a Gaza e os disparos ininterruptos de rockets contra Ashkelon, Sderot e outras cidades do Sul de Israel apenas provam quão terrível a situação se está a tornar.

O impasse ao nível da segurança que existe entre Israel e a liderança palestiniana em Gaza também conduziu aos bloqueios de ajuda alimentar por Israel, que obrigaram os 1,5 milhões de habitantes de Gaza a enfrentar uma situação de fome real. Israel, ao que parece, continua a enfatizar a primazia da segurança “dura” nas suas negociações com os palestinianos de Gaza, mas essa ênfase serve apenas para bloquear oportunidades para soluções criativas e não-violentas da disputa entre Israel e a Palestina.

Para agravar a situação, os políticos israelitas continuam empenhados em aumentar ainda mais os colonatos israelitas na Cisjordânia. Encostados à parede desta maneira, muitos palestinianos começam a não ver alternativa às tácticas radicais para atingir as suas aspirações nacionais. Uma vez que isto significa o risco de ainda mais violência, é crucial que os parceiros regionais de Israel e os actores internacionais compreendam que os palestinianos nunca serão afastados do seu objectivo estratégico de alcançar um Estado independente. O povo palestiniano nunca abandonará a sua luta nacional.

Tanto os israelitas como os palestinianos devem compreender que o mero uso da força nunca será suficiente para alcançar os seus objectivos de longo prazo. O que é necessário é uma opção viável que o partido contrário possa adoptar para que não haja recurso à violência. Embora a força por vezes tenha os seus usos, uma paz estável e duradoura apenas pode ser alcançada através de uma solução integradora de compromisso.

A resolução de conflitos, para ser bem sucedida, requer que a energia gerada pelo conflito seja canalizada para alternativas construtivas e não-violentas. Este desviar da energia da guerra pode ocorrer em qualquer patamar do ciclo de escalada, mas se a construção de uma paz preventiva não for lançada quando surgem os primeiros sinais de conflitualidade e os problemas permanecerem sem resposta à medida que o conflito se intensifica (especialmente quando se torna violento), algum tipo de intervenção é necessário.

Só então a conciliação, a mediação, a negociação, a arbitragem e os processos de resolução cooperativa dos problemas podem estabelecer-se a si mesmos. Em última análise, a reconstrução e a reconciliação são os únicos meios viáveis para trazer a estabilidade, uma vez que esta não pode ser imposta.

Nada disto é surpreendente. Mas isso obriga a questionar por que não foi feito um esforço mais concertado e concentrado na transformação da situação em Gaza e na Palestina. Um protectorado internacional nesta área para proteger os palestinianos dos mais perigosos dos seus elementos, os palestinianos dos israelitas e talvez os israelitas de si próprios já foi proposta, mas recebeu um escasso reconhecimento.

É a falta de uma tentativa coordenada para estruturar um acordo entre israelitas e palestinianos - com base numa abordagem inclusiva, interdisciplinar e sistémica que possa mudar as variáveis e conduzir a uma paz que os dois povos considerem equilibrada e justa - que mais preocupa aqueles de nós que trabalham na resolução de crises internacionais.

Um dos elementos-chave para construir uma base que conduza à reconciliação deve ser o crescimento económico. Tal como o Banco Mundial tem sublinhado repetidamente, existe uma forte correlação entre pobreza e conflito. Portanto, ultrapassar o défice de dignidade humana, a barreira entre os que têm e os que não têm, é essencial para conseguir qualquer acordo político viável entre palestinianos e israelitas. Porém, os esforços nesta área são feitos peça a peça - e são portanto insuficientes para oferecer uma esperança real de melhores condições de vida.

Os palestinianos e os israelitas precisam de estabelecer diálogos viáveis através das enormes fissuras sociais que os separam, bem como diálogos entre as autoridades e as pessoas comuns que vivem num estado de confusão face ao que é feito em seu nome. A confiança tem de ser restabelecida se queremos que as partes compreendam como poderão ultrapassar inimizades do passado. Apenas o princípio da confiança pública poderá levar a que os problemas sejam correctamente diagnosticados e resolvidos.

Evidentemente, os problemas de Israel no plano da segurança têm de ser compreendidos por todas as partes, mas medidas que ajudem à construção de um clima de confiança mútua, vindos de todas as partes, também são necessários. Aquilo de que mais precisamos agora é de uma mensagem clara afirmando que o diálogo, e não a violência, é o caminho para seguir em frente neste tempo de grande tensão.

Em Gaza, está em jogo o sentido básico de decência da humanidade. O sofrimento e a destruição arbitrária da vida das pessoas, o desespero e a ausência de dignidade humana nesta região duram há demasiado tempo. Os palestinianos em Gaza - na verdade, aqueles em toda a região que vivem as vidas mais marcadas pela falta de esperança - não podem esperar que novas administrações ou instituições internacionais ajam. Se não quisermos que o Crescente Fértil se torne num crescente fútil, temos de acordar e de ter a coragem moral e a visão política para que a Palestina dê um salto quântico.”


Vaclav Havel (dramaturgo e antigo Presidente da República Checa); Príncipe Hassan bin Tala (Presidente do Arab Thought Forum e o presidente honorário da Conferência Mundial das Religiões para a Paz); Hans Küng (Presidente da Fundação para uma Ética Global e professor de Teologia Ecuménica na Universidade de Tübingen); Mike Moore (antigo director da Organização Mundial do Comércio); Yohei Sasakawa (Presidente da Sasakawa Peace Foundation); Desmond Tutu (Prémio Nobel da Paz); Karel Schwarzenberg (ministro dos Negócios Estrangeiros da República Checa).

Texto publicado ontem no “Público”

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