18/05/2008

SÃO COISAS DA VIDA


«1 Que o primeiro-ministro fuma (ou fumava...) às escondidas dos olhares públicos era um segredo de polichinelo. Julgo que todos ou quase todos os jornalistas políticos o sabiam e eu também. Nunca me ocorreu denunciar tal ‘crime’, primeiro porque não tenho vocação para bufo, e depois porque não tenho nada a ver com os hábitos privados dos outros. Mas claro que sempre achei que um primeiro-ministro que faz questão de fazer «jogging» em viagens oficiais para os jornalistas divulgarem a imagem de um desportista na política - coisa que vende muito bem junto dos eleitores - só podia, de facto, fumar às escondidas, para não estragar essa imagem. Depois de ter decretado o bloqueio económico a Cuba, também Kennedy fumava, numa sala íntima da Casa Branca e a seguir aos jantares oficiais, os seus ‘puros’, que havia mandado comprar em doses industriais em Havana, antes de assinar a ordem de bloqueio. São das tais contradições a que o ofício obriga.

Mas sem dúvida que há uma grande dose de hipocrisia à vista quando o primeiro-ministro e dois ministros de um governo que fez aprovar uma lei fundamentalista contra os fumadores aproveitam a excepção privilegiada de um voo fretado para fumarem discretamente atrás de uma cortina. Não tivessem eles andado a apregoar virtudes de saúde pública contra os fumadores, não tivessem instituído regras de perseguição policial e moralista contra os criminosos dos fumadores, e a coisa ainda poderia passar como mordomias comuns aos poderosos. Assim, passou apenas por uma descarada manifestação de públicas virtudes, vícios privados. Mas também digo que é preciso ter um estômago à prova de vómitos para, sendo jornalista convidado a bordo do avião do Governo, aproveitar a oportunidade para denunciar as fraquezas íntimas dos governantes. Sim, já adivinho a justificação: interesse público na notícia. Talvez sim, mas não é a mensagem que está em causa, mas os métodos do mensageiro. Eu, se fosse o primeiro-ministro, da próxima vez dizia-lhes: “Agora vão em voo comercial e paguem os vossos bilhetes”. Mas eu, se fosse primeiro-ministro, não teria aprovado esta lei nem me esconderia para fumar. É claro, também, que assim nunca conseguiria ser primeiro-ministro: Churchill, a menos que se dispusesse à hipocrisia de esconder as suas fraquezas e vícios - coisa para que nunca revelou vocação - jamais conseguiria ganhar uma eleição nos tempos gloriosos que vivemos.

Mas o que mais me impressionou nesta história que se tornou ‘a notícia’ da viagem de Sócrates à Venezuela é que o sentido único de todos os comentários foi o de que o primeiro-ministro era um hipócrita porque não cumpria as leis que ele próprio mandava fazer. A enxurrada foi tanta que, com a hipocrisia já registada no cadastro (e os juros vão ser-lhe cobrados por muito tempo…), Sócrates ainda se dispôs à humilhação pública de pedir perdão à nação e jurar que ia deixar de fumar. Tal qual o menino apanhado pelo papá a fumar às escondidas na casa-de-banho. É sinal dos tempos que a ninguém tenha ocorrido outra hipótese: se os próprios membros do Governo - os legisladores - não se aguentam sem fumar durante oito horas, porque não tiram daí a conclusão de que a lei que aprovaram está para lá do razoável?



Miguel Sousa Tavares
Expresso 17/05/2008

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